quarta-feira, 16 de julho de 2014

Os espíritos em prisão

I Pe 3:18-20.

Há muita controvérsia entre bons irmãos sobre os versículos citados acima. Mas uma confusão ainda maior envolve a afirmação de que Cristo foi e “pregou aos espíritos em prisão”. Realmente não é fácil interpretar estas palavras, mas também não é impossível. É bem provável que uma das razões porque este trecho é tão difícil de entender seja porque gostamos de explicações complicadas. Neste artigo, porém, vamos tentar olhar para esses versículos da forma mais simples possível, pois as perguntas mais profundas são melhor respondidas da forma mais simples.

Muitas perguntas são feitas quando se lê esses versículos. Entre elas as mais frequentes são: como Cristo pregou aos espíritos em prisão? Quando isso aconteceu? Quem são estes espíritos em prisão?

a. A pregação
A primeira parte de I Pe 3:18 é bem clara e não gera nenhuma confusão. O
Senhor Jesus “padeceu uma vez pelos pecados, o Justo pelos injustos, para levar-nos a Deus”. A dificuldade começa na segunda parte deste versículo. Depois de Cristo ter sido morto, qual espírito O ressuscitou, o seu próprio espírito humano ou o Espírito Santo? A versão Atualizada traduz a palavra “espírito”, aqui, em minúsculo, sugerindo que seja o Seu espírito humano. Já as versões Corrigida e Trinitariana traduzem a palavra com inicial maiúscula, sugerindo que seja o Espírito Santo. Sem entrar em detalhes técnicos da gramática grega (o que pode ser feito facilmente, consultando fontes confiáveis), sugiro que este “espírito”, citado aqui, não é o espírito humano do Senhor, mas sim, o Espírito Santo. Citado por J. B. Nicholson, F. W. Grant diz: “Não é pelo espírito humano que o corpo é ressuscitado”. Falando sobre a garantia da nossa ressurreição futura, a Bíblia afirma que Deus ressuscitará nossos corpos “pelo Seu Espírito que em vós habita” (Rm 8:11). Portanto, a palavra “espírito”, aqui, é, na verdade “Espírito”.

Logo a seguir, no v. 19, vem a afirmação da pregação de Cristo: “No qual também foi e pregou aos espíritos em prisão”. Repare três detalhes antes de prosseguir.

i. No final do v.18 não há ponto final. As versões em português usam vírgula ou ponto vírgula, indicando que a frase não terminou. O que segue é uma continuação.

ii. As palavras iniciais do v. 19 – “no qual” – merecem uma pergunta: Quem é este “no qual”? Basta uma leitura do versículo anterior para se perceber que é o Espírito Santo.

iii. A palavra “também”, no v. 19 esclarece que o Espírito Santo não só ressuscitou o corpo do Senhor Jesus, como também foi a Pessoa divina por meio de quem Cristo foi e pregou.

Este terceiro item pode parecer estranho, à primeira vista, mas basta uma leitura de outras partes do Novo Testamento para se perceber que é uma verdade simples. O próprio Pedro nos dá uma ótima chave para entender esta verdade. Nesta mesma carta ele afirma que “o Espírito de Cristo” (não o espírito humano, mas o Espírito Santo) estava nos profetas do passado, enquanto estes escreviam e pregavam (I Pe 1:10, 11). Paulo escreve aos efésios dizendo que o Senhor Jesus Evangelizou a paz entre eles (Ef 2:17). O Senhor não voltou a este mundo em carne e pregou para o efésios, mas estava pregando a eles por meio do Espírito Santo que estava nos pregadores que evangelizaram naquela cidade.

Creio que esta primeira parte pode ser resumida da seguinte forma: o corpo do Senhor Jesus foi ressuscitado pelo Espírito Santo. Por meio do Espírito Santo, o Senhor Jesus foi e pregou aos espíritos em prisão. Na próxima parte tentaremos identificar quem são estes espíritos em prisão a quem o Senhor Jesus pregou por meio do Espírito Santo.

b. As pessoas
Já vimos que Cristo foi e pregou aos espíritos em prisão por meio do Espírito Santo. Portanto, imagino que a pergunta sobre como Cristo pregou já foi respondida em parte. Agora vamos tentar achar respostas às outras perguntas sobre quem são estes espíritos e quando lhes foi pregado.

Repare novamente três detalhes entre os vs. 19 e 20.

i. No final do v. 19 novamente não se usa ponto final. As versões em português usam vírgula ou ponto vírgula, indicando que o assunto ou frase não terminou, mas continua no próximo versículo.

ii. As palavras iniciais do v. 20 – “os quais” – também merecem uma pergunta: quem são estes “os quais”? Uma leitura do versículo anterior mostrará que estes sãos os espíritos em prisão.

iii. Olhando para os detalhes acima, fica mais fácil entender que estes “espíritos em prisão”, na época de Noé, foram rebeldes. Ou seja, eles eram pessoas comuns, como você e eu.

Mais uma vez pode ser que o terceiro item precise de uma explicação mais detalhada. Mas para não estender muito (o que não é o propósito deste artigo), podemos fazer a seguinte pergunta: quando os espíritos em prisão foram rebeldes? A resposta está no v. 20. Eles foram rebeldes “quando a longanimidade de Deus esperava nos dias de Nóe, enquanto se preparava a Arca”. Durante todos os anos em que Noé esteve preparando a Arca, a humanidade esteve debaixo da longanimidade (paciência) de Deus. Mas eles preferiam não dar ouvidos aos avisos divinos e, por isso, Deus não lhes perdoou (II Pe 2:5) e eles pereceram pelas águas do dilúvio (II Pe 3:6).

c. Uma pergunta

Considerando o que foi dito acima, fatalmente surgirá uma pergunta: afinal de contas, Cristo pregou aos espíritos em prisão?

Sim, pregou. Mas na ocasião quando isso aconteceu, eles não eram espíritos em prisão; eram pessoas comuns, como você e eu, que viviam na época de Noé. Como fica claro pela leitura cuidadosa de I Pe 3:18-20, o Senhor Jesus não foi pessoalmente pregar às pessoas na época de Noé. Ele foi no Espírito Santo. E assim como o Espírito Santo estava nos profetas do passado, também estava em Nóe. Sendo que Noé era um “pregoeiro (arauto) da justiça” (II Pe 2:5), não resta dúvida de que enquanto ele preparava a Arca, o Senhor pregava à humanidade através do Espírito Santo que estava nele.

Depois que o dilúvio veio, apenas Noé e sua família foram salvos (Hb 11:7). Quanto ao restante da humanidade, o dilúvio “os levou a todos” (Mt 24:39). Desde então, seus corpos foram decompondo-se na água, na lama e em qualquer outro lugar que pudessem ser encontrados, mas a alma e espíritos deles estão presos no inferno, aguardando o dia do juízo (Ap 20:11-15). Na época em que Pedro escreveu esta carta ele os chamou de “espíritos em prisão” porque é isso que são desde o dilúvio.

d. Os perigos

Há uma verdadeira montanha de interpretações de I Pe 3:18-20. Baseados nestes versículos, algumas doutrinas das mais estranhas surgiram durante os séculos. Por isso, como forma de enfatizar a verdade deste trecho e ajudar alguém que talvez tenha dúvida, vamos olhar rapidamente para algumas destas doutrinas estranhas e tentar mostrar porque elas não têm fundamento.

Alguns entendem que I Pe 3:19 está descrevendo uma possível ida do Senhor Jesus ao inferno. Dizem que logo depois da Sua morte, e antes de ressuscitar, Ele foi até lá. O motivo da Sua aparente ida ao inferno teria sido pelo menos dois. Uma linha entende que Ele teria ido pregar o Evangelho aos perdidos que estão no inferno e teria dado a eles uma segunda chance de ser salvos. Uma segunda linha entende que Ele teria ido ao inferno para proclamar Sua vitória às hostes infernais. No entanto, uma olhada cuidadosa no Novo Testamento mostrará que nenhuma destas linhas de pensamento pode ser sustentada.

a) Onde esteve o Senhor antes de ressuscitar?
Ficará mais fácil para responder essa pergunta se entendermos as partes que compõem uma pessoa.  A Bíblia inteira mostra que uma pessoa completa é constituída de “espírito, e alma, e corpo” (I Ts 5:23). Quando uma pessoa morre, seu corpo é deixado aqui neste mundo e vai desfazendo-se em pó, aguardando a ocasião da ressurreição. A alma e o espírito vão direito para o Céu (se era salvo) ou para o inferno (se não era salvo).

O Senhor Jesus, como uma Pessoa completa, tinha espírito (Jo 19:30), alma (Mc 14:34) e corpo (Hb 10:5). Depois de ter sido crucificado, Seu corpo foi colocado num “sepulcro novo, em que ainda ninguém havia sido posto” (Jo 19:38-42), e ficou ali até a ocasião da Sua ressurreição. Seu espírito (e Sua alma, visto que são inseparáveis) foi entregue nas mãos do Pai (Lc 23:46), e ficou ali até a ocasião da ressurreição.

Além desses detalhes, repare mais um, só para reforçar o que estamos vendo. O Senhor afirmou para o malfeitor que se arrependeu: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23:43). A palavra “comigo” indica que onde o Senhor estivesse aquele malfeitor também estaria. Se o Senhor tivesse ido ao inferno, naquele mesmo dia, o malfeitor também teria ido. Mas como o Senhor foi para o Pai, o malfeitor também foi para lá. Nem o corpo, nem a alma, nem o espírito do Senhor Jesus foi ao inferno. Durante os dias da Sua morte, Ele esteve com o Pai.

b) O Senhor foi dar uma segunda chance aos perdidos?
Crendo que Pedro estava falando que Cristo pregou aos perdidos no inferno (o que já vimos que não aconteceu), alguns sugerem que ele lhes foi dar uma segunda chance. Com isso, concordam com a ideia também estranha do purgatório, que prega que uma pessoa parte deste mundo sem salvação, sofre por um tempo no inferno e, depois que sofreu o suficiente pela quantidade de seus pecados, recebe uma oportunidade de ir para o Céu. No entanto, o próprio Senhor Jesus mostrou em Lc 16:19-31 que:

* quem está no Céu não pode ir para o inferno;
* quem está no inferno não pode ir para o Céu;
* quem está no inferno não pode voltar à terra.
* quem está na terra (se crer no Senhor Jesus) pode ir para o Céu;
* quem está na terra (se não crer no Senhor Jesus) pode ir para o inferno.

Depois que uma pessoa parte deste mundo, seu destino não pode ser alterado ou mudado. Está ordenado por Deus que morrerá apenas uma vez, vindo depois disso o juízo (Hb 9:27). Se enquanto estava neste mundo a pessoa não depositou a fé em Cristo, nem mesmo seu arrependimento e fé estando já no inferno a poderá salvar. Isto é solene!

c) O Senhor Jesus foi ao inferno proclamar Sua vitória?
Esta também é uma interpretação estranha ao Novo Testamento e não combina com o contexto de I Pe 3:19. Olhando de uma forma geral podemos afirmar que o Senhor Jesus venceu a morte (I Co 15:54), que Ele venceu “o que tinha o império da morte, isto é, o diabo” (Hb 2:14) e que Ele venceu todo o poder das hostes infernais (Cl 2:15). Tudo isso foi feito “na cruz” (Cl 2:14). 

Se há alguma proclamação de vitória, ela foi feita enquanto Ele era humilhado e zombado na cruz. Se Satanás tivesse conseguido desviá-Lo do propósito de obedecer até ao ponto de morte e morte de cruz (Fp 2:8), o Diabo teria vencido. Mas já que Cristo aceitou toda e qualquer humilhação, não fazendo qualquer objeção a obedecer a vontade do Pai, Ele estava, com isso, proclamando a maior vitória que este mundo já conheceu. Todos os triunfos futuros são apenas resultados deste triunfo do Calvário.

Nas palavras de Thomas Bentley: “A sujeição é completa. Eles são um inimigo derrotado. Ele vai adiante deles na Sua procissão vitoriosa, proclamando a Sua soberana superioridade sobre eles. Isto foi realizado na cruz. A cena da Sua humilhação mais profunda é o lugar da Sua vitória mais estupenda; o Seu sofrimento é a sujeição deles; a Sua morte é a derrota deles; a Sua cruz é a vergonha deles” (Comentário Ritchie, vol. 10, pág. 117).

Satanás, os demônios e a morte foram vencidos e Cristo proclamou Sua vitória, mas isto não foi no inferno, foi na cruz (Jo 19:30).

Resumindo

Neste artigo tentamos ver que o texto de I Pe 3:18-20 não está afirmando que Cristo foi ao inferno pregar o Evangelho aos perdidos ou gabar-se de Sua vitória sobre o inferno. Na verdade, durante os dias da Sua morte, Ele esteve no Céu, não no inferno.

O texto fala da pregação dEle, pelo Espírito Santo, aos seres humanos normais na época de Noé. O Senhor estava sendo longânimo (paciente) com eles, dando tempo e oportunidade para que se arrependessem e evitassem a necessidade do dilúvio (I Pe 3:20), mas não se arrependeram e foram levados à perdição, estando hoje com o espírito em prisão, aguardando a ocasião quando seus corpos serão ressuscitados e unidos novamente à alma e espírito e, como um ser completo novamente, lançados no lago de fogo (Ap 20:11-15).

Se alguém que está lendo estas linhas ainda não depositou a fé no senhor Jesus, confiando nEle para o perdão dos pecados e a vida eterna,fica aqui o solene aviso: não siga o exemplo das pessoas na época de Noé, que foram rebeldes e não se arrependeram. Se você não quer perecer junto com eles no inferno e, depois, no lago de fogo, confie no Salvador Jesus Cristo.


A. J. Anthero